
A cena é uma das primeiras de que me lembro, vem lá de algum ano na década de setenta: o menino de uns sete anos chora enquanto outros três, mais velhos, riem. O choro vem por conta de uma casca de cigarra jogada dentro da blusa do menino menor que esperneia e puxa as roupas apavorado, tentando se livrar do “bicho”. Eu devo ter também seis anos e assisto a certa distância, quando sou chamada pelos meninos maiores que mostram ao pequeno que eu, apesar de ser uma menina, não sou chorona ou medrosa pois uso várias cascas de cigarra presas na blusa, como broches. Entendo que meus “broches” inspiraram a brincadeira de mau gosto e fico com pena do piazinho, mas não falo nada e no fundo me encho de vaidade por ter sido reconhecida no mundo dos meninos.
As cascas de cigarra eram os adereços favoritos que eu e minhas irmãs aprendemos a usar, na falta de broches e presilhas de verdade...assim como aprendemos a abrir as sementes de caqui para nelas encontrarmos colheres e garfinhos que usávamos para brincar de casinha, ou a colar com água as pétalas de gerânio nas pontas dos dedos para fingir unhas longas e vermelhas.
Mais velha descobri na cigarra o símbolo da alegria despreocupada, em contraponto à secura e seriedade da trabalhadora formiga. Simpatizava mais com a formiga e tentei ser uma, até ser dispensada do meu emprego de anos em um formigueiro que já estava pequeno para mim.Então reencontrei minha cigarra, na música que
Amália Rodrigues - e depois Adriana partimpim - cantam: "Minuciosa formiga, não tem o que se lhe diga: leva sua palhinha de asinha a asinha. Assim devera eu ser - se não fôra não querer".
Ao criar o blog e batizá-lo de A Casca da Cigarra não pensei exatamente em nada disso, mas no haikai do Bashô que conta da cigarra que se entrega por completo a fazer o que gosta, até se esgotar, sem medo nem economia. Pensei que o blog não revelaria tudo que sou, só a parte mais externa, as pequenas invenções que faço para enfeitar a vida. Pensei também que a casca da cigarra é símbolo de um ser que tenta se expandir deixando para trás uma parte importante do que foi – um vestígio, uma casca.
Hoje, tento entender - com o Freud, o Lacan e a Luiza- que sou uma mulher e tenho pele, não casca, que posso me expandir sem arrebentar, que posso me entregar sem me esgotar, que posso ser a “Formigarra” ou a “Cigamiga”, trabalhando e cantando com a mesma entrega.
O blog fez um ano, cem seguidores, muitos amigos e tenho só a agradecer a quem com paciência me escuta a estridência
Imagem: http://discontosdefadas.blogspot.com/2009/05/muitos-anos-depois-eu-percebo.html